É preciso gerir! * – dizia, renitente, sobranceiro e áspero, o chefe de secção do hipermercado a quem o cliente pediu mais um saco de plástico (dos mais simples, básicos e disponíveis por toda a loja), para evitar besuntar‑se com os fluidos (melhor do que fluídos) de peixe espalhados pela superfície exterior do primeiro saco.
Presume-se que ele quereria dizer “poupar”** (palavra em desuso, apesar da sobrevivência e modernidade do termo “poupança”), ou, “ser economicamente eficiente” (expressão aparentemente rebuscada que aquele chefe de secção desconheceria).
Poupar, economizar e amealhar são palavras desconsideradas, fora de moda, feias. (Gente “deste tempo”, cidadão “culto”, pessoa “hodierna”, proscreve estes termos. Para quê poupar, se se pode comprar já, e a crédito, quase tudo o que se quiser?)
Entretanto, poupar poderá resultar em cortar no essencial e manter o supérfluo – poupar no farelo e gastar na farinha***, como diz o provérbio.
Todavia, para decidir bem, isto é, para tomar boas decisões, é preciso distinguir o essencial do supérfluo, e medir, seja os farelos, a farinha, seja contar os sacos.
E, distinguir o essencial do supérfluo, não pode ser feito sem medir, sem contar, ou com recurso a alguma métrica quantitativa (com propriedades específicas).
Gerir exige ponderação, e não há melhor ponderação do que aquela que assenta em medições.
* Hoje há um novo e extensíssimo léxico avançado: não há centros, só epicentros; os aumentos são agora todos exponenciais; não há vícios, só “adições” (aliás, seria “adicções” – um anglicismo, de addiction, e não de adition, adição, ou soma); só há logística, em vez de transporte; e resiliência (um termo – também tecnicamente – ambíguo), em vez de resistência, ou paciência, ou combatividade, entre muitos outros aparentes novitermos, ou termos da novilíngua.
Será ignorância, indolência e seguidismo associados a pronto‑a‑escrever‑e‑a‑falar‑depois‑de‑ouvir?! Todavia, alguns, mais insolentes, afirmam que não é ignorância, nem erro, nem desrespeito pela “língua”: é um novo estilo e uma nova estética, e uma nova ordem. (Amém!)
** Ninguém ousa identificar‑se, ou declarar‑se como sendo poupado – muito menos “forreta”; nem “unhas‑de‑fome”; nem “somítico” –; que careta!, diriam os outros! Dizer‑se não‑consumista; reciclador;reutilizador, sim, ainda vá!; poupado, nunca!
*** O autor não sabe quanto custam hoje os “farelos” e quanto custa a “farinha”, e admite que o provérbio já não seja válido por que os farelos estão na moda e promovidos como superiores às farinhas, e … mais caros.
(“Reciclar, reduzir, reutilizar”, eram atos/atitudes/comportamentos banais no passado – que remédio! –, mas abandonados/desdenhados/desprezados, e agora elevados ao nível do progressismo necessário e obrigatório.)
No princípio, era a vontade e a curiosidade de medir; depois, impôs‑se a necessidade de medir; e agora, em geral, prevalece a obrigatoriedade de medir.
E as medidas de uma mesma grandeza, às vezes, de acordo com conveniências, hábitos e tradições, são apresentadas com diferentes unidades.
A distância entre dois pontos sobre a Terra – uma esfera, ou quase – mede‑se, em unidades do SI (salvo o sistema anglo‑saxónico), em metros (e seus múltiplos); mas as coordenadas de um ponto sobre a mesma (Terra), correntemente, são coordenadas geográficas*, em vez das mais comuns coordenadas retangulares (no plano).
(E como determinar a distância entre dois pontos sobre a Terra – uma esfera –, definidos pelas suas coordenadas geográficas (angulares), latitude e longitude?)
São muitos os casos de caracterização metrológica de algumas grandezas através de diferentes unidades, de acordo com as conveniências**.
Por exemplo, na fatura da água, o consumo (médio) diário é geralmente indicado em litros (L), e o consumo mensal é expresso em metros cúbicos (m3).
Outro exemplo: a massa do eletrão é expressa em MeV, megaeletrão‑volt (1 MeV = 1,602 176 63 × 10−13 joules) – uma unidade de energia! – em vez de gramas (g), ou quilogramas, isto é, kilogramas (kg).
Com frequência, as distâncias são expressas em unidades de tempo: o restaurante Tasca do Avô João fica a cinco minutos – de carro ou a pé? – do painel publicitário (?) que, na estrada, o anuncia.
A idade das pessoas, principalmente as mais idosas, por vezes é expressa em “primaveras”. (Com esta “unidade”, a idade pode variar, consoante se nasce antes ou depois da primavera!)
Entre outros exemplos, as áreas grandes, algumas vezes, são expressas em número de campos de futebol***.
* Na Terra – um geoide, ou mais convenientemente, uma esfera –, as coordenadas de um ponto são habitualmente definidas pela sua latitude e pela sua longitude. Por exemplo, as coordenadas do centro geodésico de Portugal são: latitude: 39º 41′ 40,206 19 N; longitude: 8º 07′ 50,062 28 W.
No plano, os pontos são geralmente definidos pelas suas coordenadas retangulares, e a distância, dP1P2, entre quaisquer dois deles, P1(x1,y1) e P2(x2, y2), calcula‑se – mede‑se indiretamente – com a ajuda do teorema de Pitágoras:dP1P2=[(x2‑x1)2+(y2‑y1)2]1/2.
Todavia, esta medição indireta implicaria quatro medições diretas: x1, x2, y1,y2. Poderá o medidor não dispor de instrumento(s) para medir a distância entre os dois pontos, por a distância ser demasiado grande (ou demasiado pequena), havendo só instrumento(s) para medir distâncias x1, x2, y1,y2, eventualmente pequenas (ou grandes).
** Por exemplo, a pluviosidade, com frequência, tanto é expressa em milímetros (mm), como em litros por metro quadrado (L/m2).
(Repare, leitor, que, sendo o litro um “volume”, quando dividido por uma “área”, resulta um “comprimento”. Por isso, “mm” e “L/m2 ” têm a mesma “dimensão”: o “comprimento” e até o mesmo “tamanho”, o “mm”. Choveu 5 mm é equivalente a dizer que choveu 5 L/m2.)
*** Um campo de futebol tem, indicativamente, a área de um hectare (1 ha), isto é, dez mil metros quadrados (10 000 m2) – isto é, 100 vezes um “are” (1 a = 10 m × 10 m = 100 m2, isto é, um decâmetro quadrado) –, que é equivalente à área de um quadrado de cem metros (100 m) de lado (100 m × 100 m = 10 000 m2, um hectómetro quadrado, ou um hectare.)
“Significativamente maior”, ou “significativamente menor”, são declarações correntes*. E, ao contrário, são também correntes as expressões “marginal”, “irrelevante” e “vestigial“, entre outras expressões e termos, aparentemente, com pretensões metrológicas.
“Significativo”, frequentemente, é termo associado à medição (objetiva, experimental), ou à contagem.
Embora “significativo” seja termo que se usa com medidas** e contagens, também aparece ligado a perceções: o nível da albufeira (melhor do que barragem) aumentou significativamente; a medida (não metrológica, embora quantificada) do desemprego baixou significativamente. (Medir o desemprego não é contar os desempregados.)
Porquê “significativamente” e não um valor, uma medida, ou o valor de um indicador? Porque não há valores?! Porque não há quantificadores?!
“Significativamente” é uma chamada de atenção (oportuna, pertinente, conveniente, ou não), mas com frequência não passa de linguagem adjetiva, adverbial ou retórica.
Aparentemente, “significativo” e “marginal” são termos usados em situações opostas: quando a variação é considerada relevante (significativa), ou quando é percebida como desprezável (marginal). Num caso e noutro parece haver subjetividade, a não ser que se defina quantitativamente “a fronteira”, “o limiar”, “a referência” do “significativo”.
Contudo, um e outro termos – significativo e marginal – parecem ser só termos qualificativos, termos adjectivantes, embora, frequentemente, se refiram a medidas, ou contagens, ou variações de medidas ou de contagens, mas com aceção subjetiva, indefinida, eventualmente demagógica.
“Significativo” e “marginal” são termos comuns, usados por todos, e em qualquer circunstância, com ou sem clareza, com ou sem conhecimento, com ou sem propriedade, ou adequação; são termos usados com ligeireza.
Que significado numérico, metrológico, poderá ter o termo “significativamente”? E o termo “marginalmente”?
O que é “significativo” e o que, ponderadamente, justificadamente, claramente, não é?
“Algarismos significativos” é uma expressão com significado inambíguo – para alguns – quando se fala dos algarismos de uma expressão (numérica) de uma medida: algarismos que os métodos e instrumentos de medição autorizam a considerar credíveis, aceitáveis, corretos***.
* São também expressões correntes e afins daquelas: “uma parte substancial dos portugueses …”; “houve uma melhoria mensurável …”, entre outras expressões vagas com pretensões a expressões (quase) técnicas.
** Medir, na aceção metrológica, é contar: contar quantas vezes (por apuramento experimental) uma grandeza é maior do que outra grandeza da mesma espécie tomada para unidade, ou termo de comparação (unitário).
*** “Correto” não é termo (nem conceito) metrológico; não consta na versão do dicionário técnico oficial do SI, isto é, do Vocabulário Internacional de Metrologia de 2012, do VIM 2012.
A “água pura” é uma abstração (eventualmente, uma raridade real em algum laboratório). Não há “água”: há “águas”; há uma quantidade incontável de águas. Quando medimos a “água”, medimos uma água concreta (da Química), não a água abstrata (da Física).
Podemos medir inúmeras grandezas de cada água, geralmente associadas às suas impurezas, por exemplo, associadas às suas condições físicas, químicas e bacteriológicas. E de acordo com esses valores, podemos decidir, ou selecionar os melhores usos de cada uma delas*.
A “bondade” da água não tem medida, salvo quando cumpre um mínimo, ou um máximo, específicos e convencionais: não há “indicador global”, instrumentalmente determinável, que possa ser usado como medida da “bondade” da água: a “bondade” é uma característica holística, é uma avaliação humana, global, conveniente, arbitrária, de cada “água”. (As “águas minerais” – a água é um mineral! – são “águas impuras”, em geral mais caras do que as demais.)
A qualidade – aparentemente, uma característica que toda a gente parece saber o que é, e acerca da qual todos parecem estar esclarecidos e ser assertivos – da água, ou de outro produto, poderá ser perspetivada, entre outras propriedades, como propriedade holística**.
Uma pessoa está de “boa saúde” – uma característica holística, aparentemente ainda sem medida – quando ainda não lhe foram detetados, entre outros, disfunções, defeitos genéticos, ou processos de degradação relevantes.
(Um escroque, um burlão ou um vigarista poderão ter “boa imagem” se deles se narrar só algumas virtudes bem cotadas socialmente. A soma de algumas qualidades, bem manipulada, poderá sobrepor‑se à qualidade total.)
Um caso aparentemente esclarecedor poderá ser o da Inteligência Artificial (IA): para tarefas específicas parece haver concordância geral de que será útil e bem‑vinda; para funções complexas, tipicamente humanas, que exijam perceções e sensações, não, por agora, não será capaz, nem confiável.
Em geral, podemos estabelecer, arbitrariamente, uma medida, um indicador, um índice, resultante da combinação, ou composição de várias medidas metrológicas, para fins comparativos, mas, em geral, não dispomos de um instrumento ou sistema metrológico que permita a determinação de tal medida global.
* É costume associarmos características e grandezas invariantes à “água pura”, entre outras: a sua massa volúmica; a sua condutividade elétrica (não seria condutora!); e também, para nós, humanos, seria “insípida”, “inodora” e “incolor”, por exemplo.
** Simplificando: se, quando encomendamos um produto, segundo uma lista de valores de grandezas que o mesmo deve cumprir, e, controlando o produto aquando da sua receção, verificamos que o mesmo produto apresenta os requisitos desejados, dizemos que o produto tem qualidade ex‑ante (qualidade sumativa), que cumpre as especificações, isto é, cumpre uma lista de especificações arbitradas pelo cliente, e que são, em geral, mensuráveis.
Se se trata de produto, que embora não tenha sido especificado por nós, mas nos agrada, pela funcionalidade, pelo conforto, pelo desempenho; sem incómodo, sem falhas, consistente e sem disfunções, diremos que tem qualidade ex‑post (na verdade, qualidade holística).
(“Deus” poderia ser uma propriedade holística do Universo.)
Uma esfera – um sólido geométrico regular – tem um centro; a Terra – que não é uma esfera, mas quase uma esfera – terá mais do que um centro*.
Sobre uma superfície esférica não há centro: Londres, Pequim ou Nova Iorque não são o centro do “mundo”, não há centro algum sobre a superfície da Terra. Aliás, cada ponto de uma superfície esférica poderá ser um centro (arbitrário) sobre a mesma superfície esférica; o centro geométrico de uma superfície esférica não pertence à mesma superfície e coincide com o da esfera correspondente.
(Contudo, ouvimos falar, por exemplo, de “centros financeiros”, “centros religiosos” e de “centros de civilização”, correntemente identificados com pontos geográficos**.)
O Universo parece ser uma casca*** – um balão (?) –, e qualquer corpo, num ponto sobre a superfície da casca, estará no centro do Universo. Ou, num qualquer ponto da casca, estar‑se‑á no centro do Universo, como cada um de nós está no centro, em qualquer ponto sobre a superfície terrestre.
(Descartes nasceu em 1596, “no centro de França”. Que França? Que centro?)
Aparentemente, ninguém terá dúvidas quanto ao centro de um círculo e o centro de uma circunferência (o centro da circunferência não pertence à circunferência, mas coincide com o centro do respetivo círculo).
É provável que todos concordem, pela simplicidade e facilidade de localização, com o que é o centro de um quadrado geométrico regular. Mais difícil será localizar o centro de um trapézio.
Por exemplo, está definido, legalmente, com fundamento técnico, o “centro de Portugal” ****, aproximadamente o centro de uma figura geométrica irregular aparentada com um retângulo regular, sem, contudo, estarem todos os especialistas de acordo com o critério técnico de caracterização do “centro legal” atual.
* Uma esfera perfeita tem um centro geométrico; uma esfera perfeita constituída por diferentes materiais poderá ter um “centro de massa” não coincidente com o centro geométrico.
Entre outros casos, também para cada triângulo podemos definir, por exemplo: o incentro, o circuncentro, o baricentro e o ortocentro, embora, em alguns triângulos, todos estes “centros” coincidam.
** Um “centro” é, frequentemente, um ponto de irradiação, ou de convergência, ou um ponto de equilíbrio. Por vezes, “centro” é termo que seria mais identificável com, entre outros termos geométricos: vértice ou foco.
*** Aparentemente, é o regresso do conceito de “casca de noz”, de Aristóteles, quando falava do Universo.
**** Mesmo para os que estão de acordo com o critério de fixação/definição do centro de Portugal, encontramos coordenadas de diferentes formas (formatos) e valores (arredondados, ou não), eventualmente, sem respeitarem regras SI:
39° 41′ 40.20619 N 8° 7′ 50.06228 W
39° 41′ 40′′ N 8° 7′ 50′′ W
39° 41′ 37,300′′ N 8° 7′ 53,310′′ W
39° 41′ 40,21 N 8° 7′ 50,06 W
39,694502° N 8,130573° W
(Ao contrário do que por vezes se pensa, os marcos geodésicos não são identificados através de coordenadas retangulares.)