Algumas medições produzem medidas contraintuitivas.
Algumas situações de natureza metrológica, ou que apelam a avaliaçãometrológica, e o vocabulário corrente (em vez de terminologia estritamente técnica), apresentam resultados não esperados: a intuição acaba vencida pela realidade (metrológica).
A intuição não substitui a medição (e as medidas); e a perceção das medidas e dos termos de pendor metrológico poderão ser contraintuitivos:
– O “ano-luz” não é um intervalo (unidade) de tempo, é uma distância;
– a pesagem corrente não é a medição do peso;
– Uma régua aquecida “dá” medidas erradas por defeito, ou por excesso? Ou, não “dá” medidas erradas*?
– Um furo circular em uma chapa metálica, quando esta é aquecida, aumenta, ou diminui de diâmetro? Ou não sofre variação de diâmetro?!
– Nem sempre a passagem de uma corrente elétrica liberta energia térmica (calor) – efeito Joule, o fenómeno mais frequente –, um processo exotérmico que faz aumentar a temperatura. Por vezes, o processo da passagem da corrente elétrica é endotérmico, faz baixar a temperatura – efeito Peltier;
– Duas misturas idênticas, por exemplo, para a produção de gelados (sorvetes, em brasileiro), mas a diferentes temperaturas, colocadas simultaneamente no mesmo congelador, levam o mesmo tempo, ou tempos diferentes a congelar? Levando tempos diferentes, qual congela primeiro: a que entrou mais quente, ou a que entrou mais fria? (efeito Mpemba);
– A duplicação de uma medida é (só) um aumento de 100%. A expressão corrente “duas vezes mais” corresponde afinal a (um aumento de) “uma vez mais”;
– “Reduzir ao máximo” (reduzir o mais que se puder) é uma expressão usada para significar “reduzir ao mínimo” valor, ou ao valor mínimo. O que se pretende dizer é que se deseja realizar, ou se realizou, a redução máxima, ou a máxima redução;
– Rodar 360° não inverte uma posição;
– “A grama” é uma planta rasteira, uma erva, não é uma unidade de massa, ou de peso;
– “O grama” é uma unidade de massa, não de peso, embora na linguagem comum e popular se use quase exclusivamente o termo “peso”;
– A sensação de temperatura atmosférica, frequentemente, difere da temperatura obtida com termómetro;
– A massa, por exemplo, do eletrão exprime-se em eletrões‑volt, “eV”, aliás, MeV, (milhões de eletrões‑volt), uma unidade de … energia;
– Um pontapé numa bola não se caracteriza (só) pela força aplicada, F, mas também pelo tempo (ainda que curto e variável), ∆t, durante o qual se mantém a força:F∙∆t é o impulso sobre a bola; o impulso (sobre a bola) iguala a variação da quantidade de movimento da mesma bola F∙∆t=m∆v, onde m é a massa da bola e ∆v é a variação da velocidade da bola, entre antes e depois do chuto, ou pontapé.
* Sendo erradas as medidas obtidas com réguas aquecidas (ou arrefecidas), o erro (devido a temperaturas diferentes da temperatura normal [20 °C]), é percebido a contrario:sensu: o erro (instrumento aquecido) não é por excesso, mas, ao contrário, por defeito; isto é, a régua aquecida mede por defeito, mede menos do que sem aquecimento. Todavia, frequentemente, isto é, na maior parte das medições, este erro é inferior à incerteza de medição (relativa ao respetivo processo).
No princípio, “matemática” e medição* (e outros domínios práticos) confundiam‑se; estavam confundidos numa só área e pequena bolha em que o cálculo (aritmético) era um auxiliar da medição**.
(In illo tempore – e não faz muito tempo – os sábios eram generalistas, opinativos e ecléticos. Hoje já não há sábios – embora se fale de intelectuais, pensadores e filósofos –, só há especialistas; embora se diga que “todos os dias morrem sábios e todos os dias nascem analfabetos”.)
A Matemática é a única ferramenta que permite tratar com rigor quantidades (medidas, por exemplo) e relações entre elas.
As dificuldades na determinação das áreas dos terrenos compreendidos nas circunvoluções do rio Nilo***, após as inundações, teriam estimulado, contribuído e conduzido, por exemplo, ao cálculo de π, ao número pi (antes dele ter esta designação). (Não houve nunca um projeto, um plano, um propósito, de encontrar ou descobrir o número π; havia um número especial que se insinuava em muitas circunstâncias e casos e que passou a ser designado por π, pi, a primeira letra da palavra grega que se traduz, em português, por “perímetro”.)
Nos escalões escolares iniciais do ensino das medições, a abordagem destas (medições) era e é feita na disciplina de “Matemática”.
Pensavam e diziam os sábios, antes de Galileu, que os corpos sujeitos à gravidade, isto é, todos os corpos materiais, os graves, caíam todos com a mesma velocidade****. Galileu fez medições e concluiu que é a constância da aceleração que é comum aos graves, ou corpos sujeitos à gravidade. (Todavia, a resistência do ar complica a perceção direta das leis da queda dos graves quando se tenta verificá-las em campo aberto.)
Medindo muito bem, Tycho Brahe [1546–1601], astrónomo dinamarquês, tornou possível a Johannes Kepler [1571–1630], astrónomo e matemático alemão, começar a pôr em causa o modelo – melhor do que “paradigma” – ptolemaico da organização, da estrutura e do arranjo dos “céus” mais próximos de nós e, de caminho, propor novos modelos, mais simples, mais consistentes, consolidados pelo tempo e … pelas medições.
* Na Matemática, a “Teoria da Medição” (onde a Metrologia pode ser considerada um caso particular), e, na Mecânica Quântica, o “Problema da Medição”, são domínios muito relevantes de investigação. (Na Mecânica Quântica, a observação e, em particular, a medição, interfere, integra e compõe‑se com o fenómeno e a grandeza observada, ou medida!)
** A Matemática, hoje, é a mãe e o pai de quase todas as Ciências.
O(s) conceito(s) de medida integra(m) a Matemática, embora seja(m) conceito(s) abstrato(s) e independente(s) de réguas, termómetros e outros instrumentos metrológicos.
Há algum tempo, a pretexto da Covid-19, um jornal noticiava: “Matemático defende máscaras obrigatórias por mais duas semanas”, provavelmente baseado na correlação entre as várias grandezas que governam/governavam aquela pandemia.
(Sublinhado do autor desta crónica.)
*** Terá sido no Egito que a Geometria – um casamento entre medição e cálculo – começou a desenvolver‑se
**** Só caem com velocidade final igual os graves largados (deixados cair) da mesma altura.
A racionalização, cientificação* e uniformização da Metrologia, a par da legitimação, responsabilização e controlo por parte (das autoridades) dos países aderentes ao SI e dos seus órgãos dedicados à Metrologia, são bases da sua aceitação, globalização e confiança.
Contudo, sobretudo no passado menos próximo, muitos países legislavam sobre unidades, padrões e responsabilidades metrológicas, e, frequentemente, por deficiente e incipiente organização e incompletude dos sistemas metrológicos, por falta de meios administrativos, de meios técnicos e de controlo, não havia mudanças reais, nem evolução, nem progressos, fazendo com que as leis, regras e preceitos relativos à Metrologia Legal permanecessem “letra‑morta”.
Hoje, na maioria dos países, as leis, preceitos e normas – incluindo as do âmbito da Metrologia – são de cumprimento obrigatório, universal e incontornável, para além da perceção generalizada de que, na sua maioria, são justas, necessárias e tendem a melhorar as relações entre pessoas, empresas e organismos públicos.
Um detalhe não despiciendo é o da existência de órgãos (nacionais e internacionais) capazes de produzir e fazer cumprir as disposições normativas de natureza metrológica.
Todavia, as alterações metrológicas não são simples, nem rápidas, nem isentas de custos, embora a evolução e a tendência tenham sido sempre no sentido da simplificação, transparência, menor risco e maior segurança do freguês, do destinatário, do utente, já que, por exemplo, as práticas científicas, técnicas e industriais, no passado, pareciam menos necessitadas de apoio legal; a utilidade (e a necessidade) da evolução era sobretudo comercial, económica e societal.
Mas a Metrologia muda, progride, e às vezes evolui.
O litro (L), uma unidade de capacidade, definida originalmente como o volume de um quilograma de água a (cerca de) quatro graus Celsius, ou quatro celsius (4 °C), desde há algumas dezenas de anos, passou a ser equivalente ao decímetro cúbico (dm3)**, uma unidade SI de volume; isto é, passou a ser uma designação alternativa (e redundante) do decímetro cúbico.
E por que não banir o termo “litro” ***?
Em muitas embalagens de líquidos, a capacidade é expressa em centilitros, ou mililitros****, não em unidades de volume, por exemplo, centímetros cúbicos e decímetros cúbicos.
* Por exemplo, a recente libertação das definições das unidades de base SI dos artefactos (padrões) construídos para a materialização das mesmas unidades foi mais um passo na direção da cientificação da Metrologia.
** Com esta mudança, o litro passou a ser mais pequeno, embora a redução não fosse detetável nas medições correntes e quotidianas.
*** Por vezes, entre outras, é grande a inércia linguística. Por exemplo, apesar da substituição – há algumas dezenas de anos – da designação “grau centígrado” pela designação “grau Celsius”, ela (primeira designação) continua a ser usada e com a popularidade em alta.
**** Recentemente, algumas entidades fornecedoras de água para consumo doméstico, revelaram que, para que os consumidores sintam e percebam os valores faturados e, eventualmente, os consumos excessivos, as faturas da água passariam a indicar o consumo diário em litros (L). Todavia, os preçários e a faturação dos consumos mensais de água continuam a ser feitos na base da unidade de volume “metro cúbico” (m3).
(Repetição, ligeiramente alterada, da crónica de 2015-12-24)
Quando fazemos várias medições, os resultados, em geral, não são coincidentes. Sobretudo, com diferentes instrumentos, métodos e metrologistas, não haverá sempre um só valor e um só número para as várias medidas da mesma mensuranda (mensurando, em brasileiro).
Seria desejável que assim fosse, que houvesse um só valor, contudo, as medições apresentam sempre incerteza, variações e, frequentemente, erros.
Quando medimos, por exemplo, o diâmetro de um cilindro, poderemos encontrar diferentes valores das medidas porque, por exemplo, o que nos parece um cilindro poderá ser um barril, um tronco de cone, ou outra forma que, à vista, passa por cilindro.
As medidas variam e através (do cálculo) da sua repetibilidade e (do cálculo) da sua reprodutibilidade podemos tirar conclusões sobre o grau de confiabilidade das mesmas medidas.
Correto seria apresentar os resultados das medições por um intervalo de valores, o intervalo onde admitimos que a putativa medida verdadeira se encontraria. Todavia, isto seria bizarro se fosse prática corrente do supermercado, apesar de, por vezes, lá encontrarmos embalagens com a indicação “±500 g”, por exemplo.
Nada disto tem a ver com o que com frequência ouvimos sobre “dois pesos e duas medidas”. Esta expressão – dois pesos e duas medidas – exprime desapontamento, crítica e denúncia por algum processo que, afinal, não tem relação com medições.
A expressão refere-se, comummente, à utilização de critérios discordantes, eventualmente opostos, inconsistentes, variáveis, na apreciação, avaliação, ou decisão acerca de problemas, disputas e situações em que não há medições nem medidas, e nada tem a ver com a Metrologia.
A expressão aplica-se, idiomaticamente, à dualidade de critérios, na política, na gestão e em qualquer área onde haja lugar a decisões. Decisões inconsistentes.
Contudo, esta expressão tem uma origem bastante prosaica, metrológica, ligada à fraude e ao dolo, no comércio, quando os instrumentos não estavam tão disseminados, vulgarizados e banalizados como hoje, e quando poucas “coisas” eram medidas. Na expressão “dois pesos e duas medidas”, o peso era/é um artefacto metrológico (massa‑padrão), e a medida era/é, igualmente, um artefacto de capacidade, de volume (capacidade‑padrão).
Houve tempos em que alguns comerciantes tinham instrumentos com que pesavam ou mediam o que compravam, e outros instrumentos – ou os mesmos, afinados de modo diferente – para medir o que vendiam.
Os instrumentos que alguns comerciantes usavam como compradores mediam por defeito, isto é, mediam menos do que o valor real; os instrumentos que os mesmos comerciantes usavam como vendedores, mediam por excesso, isto é, mediam mais do que o valor real. Seria um modo irregular de estar no comércio, já que tais comerciantes pagavam e recebiam de acordo com as medições que os mesmos faziam.
Hoje, as fraudes com medições serão mais sofisticadas e menos comuns.
Hoje, os instrumentos usados no comércio legal são calibrados (aferidos), verificados e eventualmente certificados por uma entidade independente dos vendedores e dos compradores.
“Dois pesos e duas medidas” não é expressão da área da Metrologia, embora a reprodutibilidade de algumas mensurandas e a complexidade dos métodos de medir e as especificidades dos metrologistas conduzam, por vezes, a resultados e medidas ligeiramente discordantes.
(Publicada pela primeira vez em 2015-12-24) 2023-07-06