Sem relógio para medir o tempo, contavam‑se (os) golos.
In illo tempore, sem relógios – que eram raros e caros, os de bolso e outros relógios individuais –, sem telemóveis ou outros gadgets eletrónicos e/ou digitais – que não existiam, ou eram desconhecidos –, os miúdos que jogavam na rua promoviam partidas de futebol em que a duração da brincadeira era acordada em critérios tais como “muda aos três e acaba aos seis”; relógios, para quê?
Sem hora marcada e duração variável, sem marcações do campo (por ausência de medições), mudava‑se de (meio) campo, por exemplo, aos três (primeiros golos da equipa que se adiantava no marcador) e acabava‑se (o jogo) aos seis (ou sexto golo da primeira equipa a consegui-lo).
Duas pedras e o número de passos da praxe entre elas determinavam, moldavam e formatavam cada uma das balizas.
O “fora de jogo” – uma circunstância frequentemente fonte de dúvidas, polémicas e discussões (hoje apurada ao milímetro, com Decisão Ajudada por Tecnologia!), e que poderá servir para perceber se alguém tem educação básica em futebolês – designava-se por “estar à mama” e, em geral, não suscitava a inconformação estampada nos rostos dos profissionais e prevaricadores: – Quem, eu?! – Inquirem os profissionais seniores – Não, não, não – e acompanham os “nãos” com o respetivo, concomitante e infalível oscilar não conformado de um dedo, às vezes junto ao nariz do árbitro.
E não havia árbitro! As faltas eram denunciadas, assinaladas e gritadas pela equipa que as sofria e (quase sempre) eram aceites e executadas sem protestos nem reclamações e com alto sentido de decência, a seguir ao clamor dos três ou quatro que se pronunciavam no exato momento da falta! Putos (meninos, em brasileiro) puros, simples e ingénuos; a sofisticação, a maldade e o cinismo surgiriam mais tarde, com o crescimento e a aprendizagem com os adultos.
A distância do “penalty” (grande penalidade) era a olhómetro, ou determinada a passo; e, pelas limitações da falta de marcações dos campos, não havia pontapés de canto.
Não havia cartões amarelos, vermelhos, nem expulsões. Aquilo não era uma indústria, nem um desporto: era uma brincadeira a sério (à séria).
As regras não eram rígidas. Por exemplo, as dimensões do campo dependiam da rua, ou do largo onde se jogava, e o número de jogadores variava de acordo com a rapaziada presente e disponível. A coisa não dispensava rasteiras, empurrões e vernáculo do mais básico, suficientes para afugentar as pitas, ou raparigas (meninas, em brasileiro) e não existia a dúvida existencial de a bola ter ou não ter ultrapassado completamente a linha (não havia linha riscada no chão; a linha era virtual), agora decidida por tecnologia sofisticada, apropriada e dedicada.
O dono da bola tinha prerrogativas, por exemplo, escolher a posição em que iria jogar! De resto, possuir, exibir e disponibilizar uma bola já indiciava alguma propensão, cultura e formação para a brincadeira mais popular da rapaziada.
Jogar futebol, na rua, sem regras rígidas, sem medidas nem medições (excetuando o número de passos para determinar o tamanho das balizas), era puro deleite, gozo e prazer.
Nada dura para sempre e, enquanto dura, transforma-se, desgasta-se, degrada-se.
Um aparelho – qualquer aparelho ou dispositivo físico, incluindo os instrumentos de medição – desgasta-se; algumas das suas peças sujam-se por depósito de pó; oxidam, ou sofrem outras transformações químicas, ou de outra natureza (por exemplo, metalúrgica, incluindo as transformações metaestáveis/metastáveis); sofre agressões pelos (sobretudo maus) utilizadores (pelo desrespeito pelos procedimentos de manutenção e pelo manuseamento impróprio); e pela permanência em ambientes desadequados, por exemplo, temperatura e humidade inapropriados e ou outros fatores física e quimicamente agressivos.
Um aparelho de medir, um instrumento de medição, não tem só de funcionar bem, tem de manter‑se a funcionar apropriadamente: tem de ser (con)fiável, tem de funcionar de acordo com determinados requisitos, com conservação e invariabilidade de certas cara(c)terísticas. Estas cara(c)terísticas têm de ser verificadas regularmente. Para alguns destes instrumentos, por exemplo, os do comércio (não clandestino), algumas destas cara(c)terísticas são (obrigatoriamente) verificadas, certificadas, periodicamente (geralmente ano a ano), por terceiros, por entidades para tal qualificadas (acreditadas).
Medir a alcoolemia, pesar o anel de ouro, medir a gasolina que compramos no posto de abastecimento de combustíveis tem de ser uma operação com garantia da justeza/veracidade – formal, nominal, legal – das medidas.
Quem garante (parcialmente) a qualidade das medições? – O Estado!, é a resposta mais simples, imediata e verdadeira, geralmente através de terceiros (acreditados e) para tal mandatados.
Como conseguir instrumentos, métodos e procedimentos que deem indicações corretas? Calibrando*, com calibração feita por entidades independentes.
– Um relojoeiro fazia o “ajuste” (o acerto) dos seus relógios de acordo com os instantes dos disparos do canhão do castelo, no alto da colina, ao meio‑dia. Para não falhar o meio‑dia exato, o sargento responsável pelo disparo (diário) do canhão do castelo descia à cidade para acertar o seu relógio pelos relógios … da montra do relojoeiro!
(Não se riam por que ainda hoje há situações semelhantes, embora sem sargentos nem canhões: calibração por compadrio.)
Os problemas da calibração estão acautelados por legislação e normas numa moldura administrativa (nacional) de técnicas, métodos e procedimentos:
– Mulher acusou uma taxa de 2,23 gramas de álcool por litro de sangue, quase o dobro do valor a partir do qual é considerado crime. Porém, o Tribunal terá absolvido a condutora de um crime de condução em estado de embriaguez, por o prazo de validade da aprovação do alcoolímetro usado pela PSP (polícia portuguesa) ter expirado, segundo um acórdão consultado pela (agência de notícias) Lusa.
* Ainda se usa (não no VIM2012!) o termo aferir, em vez de “calibrar”. “Aferir” já não é um “termo metrológico” oficial; o que antigamente se designava por “aferição” passou a designar‑se por calibração.
“Calibrar é determinar os eventuais erros de indicação, ou leitura e não deve ser confundido com o ajuste dum sistema de medição” [VIM2012]
Há materiais, sobretudo substâncias e elementos químicos, que têm papel de relevo em Metrologia. Contudo, o vazio, a ausência de materiais, tem também um papel relevante na Metrologia, por exemplo, na definição da velocidade limite – a velocidade da luz –, em Física.
A água pura (uma raridade laboratorial), o mercúrio, um metal (que é líquido acima de 234,32 K, ou, acima de –38,83 °C, isto é, a temperaturas ambiente correntes na maior parte dos países e locais onde são feitas medições) e a platina são exemplos de uma substância (a água) e de dois elementos químicos (o mercúrio e a platina) com representação assinalável em Metrologia.
Mas há materiais inesperados em Metrologia – como o cabelo, usado em higrómetros –, mais propriamente em Tecnologia Metrológica.
O césio (símbolo químico, Cs) é o elemento que serve de base à definição do segundo (s, a unidade de tempo do SI).
O mercúrio (símbolo químico, Hg) é/era usado, por exemplo, em termómetros, barómetros, manómetros e esfigmomanómetros, além de constituir a base de uma unidade de pressão: o mm Hg (milímetro de mercúrio).
E a água serve também para a definição da unidade de pressão cm H2O.
A água (pura) é usada, por exemplo, na definição da escala (de temperaturas) Celsius e do grau Celsius. Era usada ainda na definição de litro [hoje, uma designação alternativa de decímetro cúbico (dm3)].
A platina (símbolo químico, Pt) era usada (a 90%), juntamente com o irídio – símbolo químico, Ir –, a 10%, no padrão do metro; e, de igual modo, usada (a 90%), juntamente com o irídio (a 10%) no padrão do quilograma*, aliás, kilograma (símbolo SI, kg), entretanto tornado obsoleto (pela definição em vigor proposta em 20 de maio de 2019).
Mas há outros materiais com papel relevante em Metrologia.
O quartzo, que exibe de modo assinalável, consistente e regular o efeito piezoelétrico – a carga elétrica gerada pela submissão dos cristais a compressão mecânica é proporcional à força aplicada –, constitui uma presença em quase todos os relógios atuais e todos os dispositivos digitais que não dispensam um gerador confiável de “ritmos” (vibrações, oscilações, flutuações); uma presença atualmente incontornável em muitos dispositivos metrológicos.
Diamante e rútilo, pelas suas durezas e baixas deformabilidades são usados em variados palpadores de sistemas de medição.
Os materiais para instrumentos de medição são um fator primordial nos casos em que se deseja, por exemplo, que os mesmos não sejam (muito) sensíveis à variação da temperatura (exibindo baixos coeficientes de dilatação/contração).
O ideal seria que, entre muitos outros, paquímetros, micrómetros e batímetros fossem construídos com materiais de coeficientes de dilatação/contração de valor nulo.
* Antigamente, alguns padrões eram feitos de pedra (por exemplo, granito, um material altamente estabilizado – em processo de estabilização durante milhões de anos – do ponto de vista dimensional e do ponto de vista das transformações metaestáveis/metastáveis (de efeitos muito significativos e comuns nos materiais artificiais como, por exemplo, algumas ligas metálicas).
Também era usado o bronze e outras ligas de cobre – pela sua relativa estabilidade química – em instrumentos e em pesos e medidas.
Há quem diga que “o passado é um país estrangeiro”. E também quem – ou os mesmos – considere que a História é … “um género literário” *.
O termo Historiometria, um termo aparente e gramaticalmente bem formado, parece não constar nos dicionários (apesar de, agora, qualquer pessoa, à revelia dos linguistas eruditos, poder publicar um dicionário digital!).
Apesar de a História ser, simplificadamente, um conjunto de narrativas – e diferentes narrativas sobre os mesmos acontecimentos, eventos e processos, consoante o historiador –, frequentemente ela não dispensa, por exemplo, uma boa medição do(s) tempo(s) e também uma boa representação do(s) terreno(s): distâncias relativas e distâncias absolutas, entre outros fatores, grandezas e medições. Para análises militares, económicas, sociais e outras.
Embora as métricas, medições e contagens em retrospetiva mereçam por vezes algumas reticências, dispensá-las seria inaceitável.
A História e as áreas relacionadas – Arqueologia, Antropologia, Paleontologia, entre muitas outras ciências – estão dependentes de técnicas (e de tecnologias) de medição do tempo, por exemplo, de datação**, entre muitas outras grandezas que gostaríamos que fossem medidas, pese embora muita História ser um conjunto de opiniões, retrovisões e interpretações em modo retrospetivo (eventualmente anacrónico), mais ou menos explícitas, da lavra dos respetivos historiadores***.
Na atualidade, há “processos em curso”, como os que, por exemplo, envolvem o futebol (entre outras áreas clubísticas), em que o mesmo jogo (de futebol) é descrito de tantas maneiras quantos os narradores, embora as narrativas dos adeptos intraclube sejam geralmente idênticas. Certos são os “golos” – embora, segundo alguns, quase sempre discutíveis, irregulares, injustos – os “cantos” e os “cartões amarelos”, por exemplo, embora todos discutíveis, mas (realmente) ocorridos.
Pelo contrário, na História, em geral, não há resposta (segura) relativamente a quantos foram os participantes numa batalha; qual a duração efetiva dos confrontos em várias batalhas; quantidades exatas de mortos e feridos durante as batalhas e as guerras (geralmente bastam estimativas de percentagens!); as estratégias, as táticas e os procedimentos, apesar, frequentemente, das narrativas dos cronistas coevos (entremeadas com mentiras, omissões, erros, incorreções e meias verdades, dificilmente identificáveis).
* José Mattoso, no livro “D. Afonso Henriques” [2007], de 432 páginas, sobre o primeiro rei de Portugal, ou, sobre o primeiro rei dos portugueses (coisa diferente de ser rei de Portugal!), diz que “Os principais factos que constituem a matéria narrativa de Afonso Henriques podem-se enunciar em poucas linhas”. Também diz que “… não se pode perceber … uma personagem medieval [e as outras?] sem uma grande dose de imaginação”.
** Contudo, por exemplo, a mudança do calendário juliano para o calendário gregoriano, começada em 1582, mas não simultaneamente em todos os países, poderá ser fonte de confusão e polémica. Para além das incertezas intrínsecas das técnicas e métodos de datação.
*** Frequentemente, os historiadores veem na História forças, tendências, valores que lá não estavam, nem na época, nem no local, nem nas mentes dos protagonistas. São frequentes os anacronismos (de perspetiva) nas narrativas históricas, principalmente quando se olha para o passado com olhos/visões do presente.