A Terra tem quatro cantos – quantas vezes não ouvimos já proclamações aos quatro cantos do mundo?!
A Terra, às vezes, é vista como uma sala grande, a céu aberto, plana, quadrada, ou retangular, com quatro cantos, coberta com toldo azul – e onde está amarrado o toldo?, perguntavam alguns antigos!
E, além disso, aparentemente, às vezes, bastaria a latitude para as localizações sobre a mesma Terra: aqui e em outras latitudes, diz-se, para referir outros locais, ignorando‑se a longitude.
Agora, a sério.
A expressão idiomática “outras latitudes” parece querer englobar, entre outros significados, “outros locais”, incluindo os que ficam a outras latitudes e a diferentes longitudes!
A linguagem, a ciência e a sabedoria populares – hoje correntes e dominantes nas assoberbantes redes sociais e nos média – são bastante singulares!
Dantes, para navegar no mar, media-se o Céu. Hoje, os satélites artificiais, lá em cima e lá em baixo (o Céu dos antípodas) fornecem‑nos muitas das medidas de que precisamos.
Duas grandezas, dois comprimentos, X e Y, bastam para localizarmos um ponto sobre uma folha de papel, ou no chão de uma sala, num campo de futebol, ou num plano qualquer. X e Y são expressos em unidades de comprimento.
Duas grandezas, dois ângulos, latitude (φ)* e longitude (λ)*, bastam para localizarmos um ponto sobre uma esfera, sobre a Terra.
A longitude (e a hora, o tempo), principalmente no mar, foi mais difícil de medir do que a latitude.
(A propósito, leitor, a latitude e a longitude da sua morada estão na internet.)
Já deve ter reparado, leitor, que a latitude e a longitude se expressam em unidades de ângulo, ou distâncias angulares. Unidades, não unidade: a latitude e a longitude exprimem‑se em graus (de ângulo, ou arco), minutos (de ângulo, ou arco) e segundos (de ângulo, ou arco).
Eis as unidades de ângulo correntes, banais, populares, incluindo as grandezas latitude e longitude: graus (°), minutos de grau ('), segundos de grau (")**. (Não confundir com minuto de tempo – símbolo, min – e segundo de tempo – símbolo, s.)
Dividamos a Terra em gomos, de polo a polo, como um melão. Ao longo do bordo de cada gomo a longitude não varia, mas vai variando a latitude: de zero grau (0º), no equador, a ±90º (90º N; 90º S), nos polos. Cada quilómetro, ao longo do bordo do gomo, perto do polo, ou perto do equador, vale o mesmo “ângulo ao centro” (ângulo com vértice no centro da Terra), ≈ 0,54′; e cada minuto (de arco) corresponde, no bordo do gomo, à distância de uma milha marítima (1852 m).
De bordo a bordo de cada gomo, ao longo do mesmo paralelo (circunferência), mantem-se a latitude, mas varia a longitude. Contudo, a variação da longitude, sobre cada gomo e sobre o mesmo paralelo é idêntica, quer junto aos polos, quer junto ao equador. As duas faces do gomo, dois planos, fazem um ângulo, o mesmo de bordo a bordo, embora as distâncias de bordo a bordo sejam diferentes: “grande” no equador, nula no polo.
*Por vezes λ representa a latitude e φ representa a longitude.
**Também são usadas as unidades “grau” e “minuto” e decimais de minuto, por exemplo, 35° 27,2873'. É ainda frequente a opção “grau” e decimais de grau, por exemplo, 56,918273°.
“Não nos meçam pela vossa bitola” – um argumento aparentemente de superioridade, de autoridade e de inflexibilidade – é uma expressão comum, corrente e frequente.
Com bitolas e padrões “superiores” não se brinca!
Contudo, medir pela mesma bitola é o que proporciona a comparabilidade, a objetividade e constitui o alicerce da rastreabilidade metrológica*.
Medir pela mesma bitola é um dos fundamentos da Metrologia. (E talvez também das democracias.)
Se fôssemos partidários, seguidores e respeitadores de valores, de padrões e de critérios gerais, comuns, rigorosos, não reclamaríamos padrões especiais, “nossos”: aceitaríamos o mesmo padrão para todos, não?! E deveríamos preocupar‑nos com o não cumprimento de padrões (comuns); os padrões comuns garantem a comparabilidade.
Medimos os comprimentos pela bitola “metro” (m) do SI; medimos as massas, ou pesos, pela bitola “quilograma” (aliás, kilograma, kg) do SI, entre outras bitolas de outras grandezas** quando fazemos medições.
Contudo, bitola tem vários significados – como quase todas as palavras portuguesas, é polissémica –, mesmo na área da metrologia‑popular, onde frequentemente significa “padrão”, “referência”, “standard”. Talvez o significado mais corrente de “bitola” seja o de distância entre carris, no mundo ferroviário.
O padrão, a referência, a bitola comum é fundamental, essencial e incontornável num sistema metrológico***.
Pela bitola caseira, dizer que o menino não tem temperatura, significa que não tem febre – ter febre, ter temperatura corporal superior a um valor de referência, é sintoma de doença –, significa que a sua temperatura corporal é de cerca de 37 °C. E, de modo idêntico, se o idoso não tem colesterol, significa que o seu colesterol está abaixo do(s) valor(es) de referência.
Pela bitola do sistema educativo português, ter negativa numa prova de avaliação é ter uma nota ou classificação inferior a dez (“valores”); as notas ou classificações negativas, na escola, não são classificações inferiores a zero.
Pela bitola corrente, uma “pressão negativa” é uma pressão inferior a uma atmosfera (1 atm≡760 mm Hg).
Aparentemente, não é só a Metrologia que tem bitolas: por exemplo, o senso e linguagem comuns também têm bitolas – e cada área (e cada um?) tem a sua!
*Rastreabilidade metrológica – Propriedade dum resultado de medição pela qual tal resultado pode ser relacionado a uma referência através duma cadeia ininterrupta e documentada de calibrações, cada uma contribuindo para a incerteza de medição. [VIM 2012]
**Há “bitolas”, ou padrões, para as unidades de base do SI, bem como para outras unidades.
***Há uma hierarquia de bitolas, de padrões no SI. Por exemplo, para o padrão do quilograma (aliás, kilograma) existe o padrão primário (em vias de se tornar obsoleto), em Sèvres, em França, e padrões secundários, cópias do primeiro, nos laboratórios nacionais dos países aderentes. Dentro destes países há instituições com padrões de ordem inferior que, por exemplo, servem para a comparação e verificação direta dos instrumentos dos estabelecimentos comerciais.
Há medições de qualidade e outras (medições) que não o são: na qualidade das medições há de tudo, das medições de boa qualidade às de má qualidade.
Outra coisa são as medições da qualidade; a qualidade como (eventual) grandeza mensurável: alta qualidade, baixa qualidade, qualidade assim‑assim.
Relativamente a muitos produtos, falamos das respetivas vertentes quantitativas e qualitativas como se se tratasse de perspetivas não miscíveis, inconciliáveis, de diferentes naturezas, de dois mundos distintos.
Contudo, a “quantidade” poderá por vezes ser um indicador da “qualidade”: uma grande procura de um produto (no mercado) poderá ser um indício da qualidade desse produto (ou da relação qualidade/preço).
Habituamo‑nos, aparentemente de modo inconsciente, a considerar que há aspetos nas coisas que não são quantificáveis e ainda menos, mensuráveis.
“Qualidade” é, frequentemente, o conceito que serve de chapéu àquelas cara(c)terísticas relevantes alegadamente não mensuráveis, ou não medidas (qualidade ex post*) e que resultam de apreciações mais ou menos subjetivas.
“Qualidade” é também um corpo de conhecimentos e tecnologias que abrange as cara(c)terísticas mensuráveis (qualidade ex ante*) previamente estabelecidas – especificações (requisitos).
Assim, temos as “medições de qualidade”, no âmbito da “qualidade das medições”: qualidade dos fatores que concorrem para a obtenção de cada medida, desde o medidor, ou metrologista, ao instrumento, do método aos procedimentos, da (natureza da) mensuranda (mensurando, em brasileiro) às condições da medição.
Por outro lado, a qualidade seria, frequentemente, suscetível de gradação, de medição, presumindo‑se possível a “medição da qualidade”.
“Medições de qualidade” e “medições da qualidade” são expressões que diferem numa letrinha somente e que denominam processos muito distintos: assuntos, áreas temáticas e objetivos muito diferentes.
Não é só a qualidade das medições que pode ser avaliada, mas a própria qualidade seria mensurável, embora “qualidade” (ex post*) seja quase o que cada cliente, utente (usuário, em brasileiro), ou usufrutuário quiser!
Medir com qualidade poderá não ser polémico; mas, medir a qualidade já é mais difícil, menos comum, mais controverso.
“Não sei o que é a qualidade, mas reconheço-a quando a vejo”, dizia alguém ligado a uma entidade dedicada à qualidade.
Medições mal feitas não têm qualidade! E se há boa e má qualidade, alta e baixa qualidade, não poderíamos estabelecer e convencionar um critério, uma métrica, uma escala para a medir?
*Estas expressões (latinas) – ex ante e ex post – são usadas em várias situações e setores.
Um par de sapatos tem qualidade ex ante se está conforme (em conformidade) com as especificações e requisitos prévios que alguém tenha imposto, por exemplo, ao fabricante dos sapatos. Todavia, o mesmo par de sapatos só terá qualidade ex post se o utente, calçando‑os, se sente bem, confortável e satisfeito com o uso e posse dos mesmos sapatos.
Na primeira aceção (ex ante), toda a gente estaria de acordo; na segunda (ex post), “cada cabeça – e, eventualmente, cada par de pés –, cada sentença”.
– Trezentos gramas de fiambre, por favor – pediu o cliente na charcutaria.
– Trezentas gramas! – emendou a empregada, em tom simultaneamente pedagógico, escarninho e insolente, com a segurança, desdém e sobranceria próprios dos que têm formação sobretudo mediática e são simultaneamente especialistas e generalistas no corrente, pantanoso e ambíguo senso comum.
Na fila, os outros clientes, sorridentes, aprovaram implícita, convicta e tacitamente a correção feita pela salsicheira.
O cliente não tugiu nem mugiu e decidiu não enfrentar a multidão nem a improvisada, circunstancial e destemida líder.
Trezentas gramas, segundo a charcuteira, mas poderiam ser duzentas gramas, numa apresentação de um pivot na TV, em qualquer canal, ou quinhentas gramas na boca de um jornalista de uma emissora de rádio.
Toda a gente sabe de medições e de medidas. – É assim que eu digo e o que digo é para ser respeitado! – diria qualquer pessoa respeitável.
Grama (g), unidade de medida, submúltiplo do quilograma* (kg), em português, é do género masculino: um grama (1 g); dois gramas (2 g); duzentos gramas (200 g); muitos gramas.
Tal como quilograma* (1000 g=103 g=1 kg) é do género masculino, são do género masculino, por exemplo: hectograma (hg) e decagrama (dag) – não confundir com o decigrama (dg). Mas, chegados ao grama, eis‑nos confusos quanto ao género (gramatical!).
O símbolo do grama é g; os símbolos com que frequentemente o grama é abreviado, tais como: gr, gr., G, G., GR, GR., Gr, Gr., entre outros, não são corretos e não devem ser usados.
Ainda nas charcutarias, para sublinhar a heterodoxia de certas designações, em geral não encontramos “fiambre extra da perna”; não!, só “fiambre da perna extra” – é assim a designação corrente e tradicional, embora esta última designação possa soar estranha a algumas pessoas.
A grama é uma planta; o grama (símbolo SI, g) é uma unidade de massa e um submúltiplo da unidade quilograma* (símbolo SI, kg), mais conhecido, em Portugal, por quilo.
Todavia, quando uma atitude, uma palavra, uma ação são aprovadas, adotadas e praticadas pela maioria, a coisa passa a ser democrática – sem itálico –, logo, democraticamente legítima, sem itálico.
Alguns linguistas dirão que a palavra “grama” – unidade de massa –, pela força democrática da maioria, um dia virá a ser dicionarizada como sendo do género feminino, ou com dois géneros (gramaticais!).
A língua é uma das instituições mais democráticas de um povo, sendo enformada pela vontade da maioria, contudo, esperamos que por muito tempo a maioria não logre mudar o género do grama (g), o milésimo do quilograma* (0,001 kg=1/1000 kg=10‑3 kg=10‑3x103 g=1 g).
* kilograma, segundo o VIM 2012 (Vocabulário Internacional de Metrologia)