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Medidas e medições para todos

Crónicas de reflexão sobre medidas e medições. Histórias quase banais sobre temas metrológicos. Ignorância, erros e menosprezo metrológicos correntes.

Medidas e medições para todos

Crónicas de reflexão sobre medidas e medições. Histórias quase banais sobre temas metrológicos. Ignorância, erros e menosprezo metrológicos correntes.

NEM MAIS, NEM MENOS

NEM MAIS, NEM MENOS

Não há medidas exatas

 

Em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, há uma passagem em que uma personagem, para se vingar de uma irregularidade de uma outra, é habilitada por um juiz a cortar do corpo do prevaricador uma certa quantidade de carne. “Nem mais, nem menos”, teria dito o juiz. Aparentemente, teria de ser uma quantidade exata!

É pouco provável que Shakespeare soubesse ou intuísse a impossibilidade prática – hoje também teórica – de se fazer pesagens exatas.

Shakespeare teria só em mente o que sabemos das idas ao talho, quando solicitamos, por exemplo, setecentos gramas (700 g) de vitela: o talhante nunca acerta! Os olhos, as mãos e a experiência do cortador de carnes não conduzem a faca de modo a retirar da peça de carne um naco de peso exato!

O talhante teria menos dificuldades com carne picada.

Antes de pesar, o talhante, cortando, dá existência ao naco e à mensuranda: o peso do naco. Só de seguida procede à medição, à pesagem.

Problema idêntico teria o queixoso, a personagem de Shakespeare: teria de criar um naco de carne, com peso exato, sem o poder medir – pesar – antes de o cortar!

Mesmo que conseguisse um corte exato, teria um problema adicional: a incerteza da medição.

Nas medições não há valores exatos, valores absolutamente exatos, valores sem incerteza (e sem erros). “Incerteza” – um termo definido no Vocabulário Internacional de Metrologia –, não é erro, é impossibilidade de exatidão absoluta; uma fatalidade, gerível, mas incontornável.

Não há duas medições iguais, como não há duas coisas iguais: como distinguir uma medida exata de uma não exata? A Metrologia Legal e as medidas legais são a solução para muitos casos mais delicados.

Contrariamente ao conhecimento e prática comuns, uma medida não deve exprimir-se por um número, mas por um intervalo. Ninguém pode garantir que uma determinada quantidade de gasolina é um litro exato de gasolina. Por simplicidade, é aceitável que essa quantidade seja designada por, nominalmente, um litro (1 L). Profissionais da Metrologia que procedam com critério à medição daquela quantidade poderão expressar o resultado, por exemplo, por 1,000 L ± 0,005 L, um intervalo, não um número. E, ainda assim, com uma probabilidade (de confiança) associada.

A Metrologia é a ciência, a arte e a tecnologia da medição, e os valores exatos são uma abstração, uma impossibilidade. A exatidão só pode ser um horizonte, não um objetivo; cada medição tem uma incerteza associada. Toda a medição é acompanhada por uma incerteza. A incerteza varia de acordo com os instrumentos usados, com os métodos, com o metrólogo e com as condições envolventes do processo de medição. A incerteza é uma propriedade das medições.

Pode-se aumentar a precisão de um instrumento, mas a incerteza, embora possa diminuir, lá estará.

Um metrologista, medindo várias vezes com o mesmo instrumento, com as mesmas técnicas, métodos e procedimentos encontra frequentemente variações no valor de uma mensuranda; um indicador, uma medida desta variabilidade é a repetibilidade.

Mudando de metrologista, de instrumentos e de técnicas para medir uma mesma mensuranda encontrar-se-ão, em várias medições, variações das medidas; um indicador, ou medida desta variabilidade é a reprodutibilidade.

Não há medidas exatas, mas há critérios para estarmos de acordo quanto ao mais ou menos das mesmas.

 

2015-11-26

INSTRUMENTOS QUE MEDEM MAL

INSTRUMENTOS QUE MEDEM MAL

A perfeição é um horizonte fugidio

 

Todos os instrumentos medem mal; alguns medem menos bem do que outros.

A perfeição é uma abstração. Mas, “perfeição” é um termo e um conceito útil, se não, não teria sobrevivido: a evolução vai poupando o que é útil.

A perfeição é um horizonte e o horizonte é inalcançável: quando perseguimos o horizonte que está à nossa frente, outro horizonte surge mais distante; a perfeição é um horizonte fugidio, é um objetivo em movimento.

Não há instrumentos perfeitos e, além disso, cada instrumento é o instrumento e a sua circunstância.

Um instrumento pode ser muito bom e ser mal utilizado: a circunstância contribui para a qualidade da medição.

Uma régua aquecida mede mal: mede por defeito, mede de menos – um resultado inferior ao que deveria dar –, ou mede por excesso, mede de mais – dá um resultado superior ao que deveria dar?

Uma régua arrefecida também mede mal.

Mas, aquecida, ou arrefecida, em relação a quê? A temperatura de referência para as medições é, em geral, 20 °C.

Há instrumentos mal fabricados, mal graduados, mal utilizados.

Há instrumentos que não respeitam normas específicas: são produtos de consumo, são artefactos correntes, não parecem ser mais do que brinquedos.

Os instrumentos são artefactos, são produtos artificiais, são fabricados, não são perfeitos, seja qual for a definição de perfeição: têm defeitos.

A realidade é sempre imperfeita quando a comparamos com a perfeição humana! Só as ideias são perfeitas, mesmo que opostas, divergentes umas das outras, ou mirabolantes!

Os instrumentos necessitam de calibrações regulares e eventuais afinações.

Para quem estiver atento, uma ou outra balança do supermercado revela, através do visor, um peso diferente de zero – às vezes negativo! – antes de lhe ser apresentada qualquer mensuranda.

As balanças dos ourives estão protegidas por envoltórios que, entre outras circunstâncias, as preservam da influência dos movimentos do ar.

As balanças, de um modo geral, deverão estar assentes sobre superfícies horizontais; e a horizontalidade deve ser regularmente controlada.

Os velocímetros dos automóveis, por razões aceitáveis, medem mal: indicam uma velocidade marginalmente superior à velocidade real do carro.

Os instrumentos que sofrem quedas, ou outros incidentes que nos fazem questionar a sua integridade ou justeza, deverão ser recondicionados, dispensados, ou alienados, pelo menos do nível de qualidade metrológica em que costumavam ser usados: um instrumento de que se questiona a confiabilidade do uso na fábrica talvez possa ser usado no armazém de algumas matérias-primas.

Com o uso e o tempo – artefactos sem uso também se alteram com o tempo – os instrumentos de medição degradam-se e perdem qualidade; sem controlo dos instrumentos de medição as medidas são menos confiáveis.

Para o mesmo tipo de instrumento há geralmente marcas, modelos e versões inumeráveis. E, naturalmente, isto reflete-se na qualidade, na repetibilidade e justeza das medições com esses instrumentos.

 

2015-11-19

ÀS VEZES A ÁGUA FERVE A 100 °C

ÀS VEZES A ÁGUA FERVE A 100 °C

Haverá “unidade” mais comum do que o “grau”?

 

A água ferve a cem graus e o ângulo reto a noventa é a expressão com que termina uma conhecida anedota.

A água ferve a 100 °C, não a 100°.

A água pura entra em ebulição, à pressão normal, a cem graus Celsius (100 °C – um/zero/zero/espaço/grau/cê maiúsculo); um ângulo reto equivale a noventa graus (90° – nove/zero/grau). Por definição; por convenção.

Não há relação alguma entre o grau Celsius (°C), unidade corrente de medida da temperatura, e o grau de ângulo ou de arco (°), unidade de medida corrente de ângulo, ou de arco. Todavia, estas não são a unidade de temperatura e a unidade de ângulo ou arco do Sistema Internacional de Unidades (SI).

Um quarto de uma circunferência – a circunferência é a fronteira do círculo – tem um arco de 90°.

A unidade de medida corrente de temperatura, entre nós, é o grau Celsius (°C), também dito, não corretamente, grau centígrado. Em alguns países anglo-saxónicos a unidade corrente de temperatura é o grau Fahrenheit (°F).

A unidade de medida corrente de ângulo, ou arco, é o grau de ângulo, ou grau de arco (°), contudo, uma outra unidade de medida de ângulo, ou arco, mas não complexa, é o radiano. Um radiano vale 180°/π, cerca de 180°/3,1415, aproximadamente 57,3°, ou 57° 18‘ – cinquenta e sete graus e dezoito minutos (de ângulo, ou arco). Uma circunferência tem um arco de 360°, um pouco mais do que 6,28 rad, exatamente 2π rad. π é o símbolo usado para representar um número especial, transcendente, uma dízima infinita não periódica, um pouco maior do que 3,1415.

Não é correto escrever 100° C, ou 100°C.

A água ferve a 100 °C se a pressão for de uma atmosfera – uma unidade de pressão. Na panela de pressão, fechada, a água ferve a uma temperatura superior a 100 °C.

Acrescentar, por exemplo, vinte graus e meio (20,5 °C) aos cem graus (100 °C) da temperatura de ebulição da água perfará 120,5 °C.

Se se acrescentar, por exemplo, vinte graus e meio (20,5°) ao valor do ângulo reto, 90°, o total perfará 110,5°, todavia, correntemente, este valor escrever-se-á 110° 30’, cento e dez graus e trinta minutos, um número complexo, por comportar duas unidades, o grau e o minuto.

Com ângulos, os submúltiplos correntes do grau são o minuto de arco ou de ângulo (‘) e o segundo de arco ou de ângulo (“).

Na prática científica, a unidade de ângulo é o radiano (rad), uma unidade de medida de arco ou de ângulo decimalizada. Deste modo, as medidas expressas em radianos (rad) não são complexas: os submúltiplos do radiano exprimem-se por decimais do radiano, por exemplo: 0,35 rad; 1,253 rad; – 0,137 rad.

Com radianos temos só uma unidade de ângulo e não graus, minutos e segundos.

Na prática científica, a unidade de medida da temperatura (absoluta) é, em geral, o kelvin (K), a unidade de temperatura do Sistema Internacional de Unidades; e cada kelvin (K) vale tanto como cada grau Celsius (°C). É errada a expressão grau Kelvin.

Com kelvins e radianos não temos necessidade do grau, de graus.

 

2015-11-12

MEDIR BEM

MEDIR BEM

Lata a pingar poderá ser relógio

 

O jornal noticiou: Durante 15 dias, o Big Ben deu a hora errada, interrompendo as emissões radiofónicas da BBC e BBC World Service, que utilizam o som do seu badalo (“sic”) em direto.

Bem medido, para um consumidor português, geralmente significa receber mais do que a medida certa.

Medir é fácil. Medir bem exige competência especializada.

A alcoolemia mal medida pelas autoridades do trânsito poderá levar à detenção injusta do condutor (medição por excesso), ou deixar a conduzir, indevidamente, um bêbado, um transgressor (medição por defeito).

Recentemente, uma equipa de cientistas fez medições que revelariam a existência de ondas gravitacionais, mas análises posteriores revelaram incorreções nos resultados e ilicitude na sua interpretação, devidas a impreparação, ingenuidade e precipitação dos mesmos cientistas e, em consequência, resultou o desmentido da prova da existência daquelas ondas.

Há, em princípio, um só modo de medir bem, mas há um número indefinido de modos de medir mal.

Há três condições necessárias muito relevantes para uma boa medição:

 

1 – Instrumento calibrado (ou aferido, como se dizia no passado e continua a ser dito por muitos) e, se possível, afinado;

2 – Metrologista, ou metrólogo com formação específica;

3 – Procedimentos preestabelecidos (por norma, por regulamento, por autoridade competente).

 

Estas condições são necessárias, mas não são suficientes.

Como se mede bem uma grandeza (mensuranda) mal definida, ou definida com ambiguidade? Por exemplo, o peso de uma pessoa é medido em jejum?, sem roupa? e descalça? E as eventuais próteses que lhe tenham sido implantadas, contam?

Como medir bem o nosso peso se ele está sempre a mudar? Medimos o peso instantâneo assinalando a data-hora?

Como se mede o diâmetro de um cilindro que – pode não se notar à vista desarmada! – tem a forma de um barril?

A Volkswagen terá feito boas medições das emissões de gases dos carros?

Nem todas as mensurandas têm a simplicidade, a clareza e a inambiguidade do comprimento de um palito.

Cinquenta gramas (50 g) de batatas não têm relevância económica; um grama (1 g) de ouro é uma quantidade não desprezável. Em alguns medicamentos, cinco miligramas do princípio ativo, cinco milésimos do grama (5 mg = 5x10-3 g = 0,005 g), são a diferença entre saúde e doença. Contudo, cinco miligramas (5 mg) não sensibilizam uma balança de pesar batatas.

Não é difícil medir; medir bem exige preparação, conhecimento e treino.

Contudo, a Tecnologia, incluindo a tecnologia metrológica, cada vez mais omnipresente, sofisticada e amigável, dispensa a formação profunda do metrologista, ou de quem mede. Todavia, quando há erros, incertezas, ou contestação das medidas, os agentes que medem, geralmente com formação metrológica reduzida, incipiente, ou insipiente, não são de grande ajuda no esclarecimento das dúvidas, reparação dos erros, ou no reprocessamento correto das medições.

 

2015-11-05

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